sábado, 14 de julho de 2007

E deus agora cria as cidades: as flores do mal ou a flor má




Kevin Lynch escreveu um livro chamado a Imagem da Cidade. Não me lembro do que dizia, nunca dei nada por nenhum livro de teoria da arquitectura, mas lembro-me do título e lembro-me, hoje, que a cidade não tem imagem mas que as tuas imagens têm cidade.
Sabias que é deus ou Deus, sei lá, que agora cria as cidades? Dantes criava a selva. A floresta era dele (vou optar pela letra minúscula pois para mim igrejas são só arquitectura), dantes ele mandava na natureza, decidia onde é que nasciam as árvores, e as flores e os rios. Hoje já não. Hoje esse deus somos nós. Hoje somos nós que plantamos as árvores e decidimos se vamos ter uma relvado verde com duas pedras. Hoje podemos escolher as flores mais bonitas para aquele espaço. Quando li o início e o fim da bíblia não era assim. Era ele que plantava e que dava forma e nome aos bichos. Hoje enjaulamo-los e pagamos para os ver limpinhos e de pelo macio. Tens ido ao jardim zoológico? Está cada vez mais urbanizado. Tens ido ao campo? Não? Pudera, os Portugueses só plantam eucalipto e esperam que aquilo dê boa madeira para a mesa onde amanha vamos tomar o nosso café bem no centro do Porto. No Rivoli ou no Lobbie? Já me estou a perder.
Era deus que tratava desses assuntos, da natureza, hoje somos nós! E as cidades? Adoro cidades, sabes? Estou a estudar arquitectura, é normal, mas gosto demasiado de cidades.
Hoje é deus que cria as cidades. Já não lhes conseguimos por as mãos. Crescem e crescem como querem. Hoje as cidades já não são para nós, sabias? Já não precisam de nós, são bichos ou plantas, os novos bichos e as novas plantas. Urbanizámos o território para nos servir, humanizámos os espaços ou o espaço. Criámo-las para as habitarmos, um organismo onde metíamos tudo o que precisávamos para viver. Mas elas crescem sem parar. Sabes o que me entristece? É que tenho umas cadeiras na faculdade que nos ensinam a planear cidades, a prever, a fazermos o papel de deus ao inventarmos para onde e como a cidade vai crescer. Mas…não sei, não dá para agarrar a cidade… Tudo o que fazemos é urbanizar ou reurbanizar parcelas de espaço, mais ou menos extensas que coordenam e qualificam, que querem agir em rede de complementaridade, mas…não a conseguimos agarrar. Parece um organismo vivo onde ninguém, nem o deus que parece que criou as flores, tem mão. Não dá para planear porque ela cresce sempre da maneira inversa. Por isso te falo em inversão de valores. Se me pedirem para planear o futuro natural do país eu consigo: acabo com os pinheiros e os eucaliptos e mudo a floresta nacional para melhor, mas se me pedem para planear a cidade tenho ideias incríveis, sei o que a cidade precisa para evoluir no bom caminho, mas não dá! é esforço perdido, ela vai sempre crescer na direcção que bem lhe apetecer.
Já vi as tuas fotos, são estranhas, sabes porquê? Andas por aí a fotografar a cidade sem pessoas, a horas mortas, vais para lá de manhã bem cedo ou ao domingo, mas não precisas. Filosoficamente falando, tenho andado a pensar nisto, a cidade já não tem dias e horas mortas porque não precisa de pessoas e cresce sem lhes perguntar se tem mesmo de crescer e se é essa a direcção.
Ando a ler as flores do mal, traduzidas, porque nunca me apeteceu aprender francês, e percebi que o Baudelaire fala de uma vida da cidade que já não existe. Uma cidade de pessoas, feita por elas e para elas. Não sei se naquela altura o Homem ainda tinha mão na cidade, mas pelo menos a cidade precisava dele. Era uma grande flor que crescia ao ritmo da luz, mas que crescia também ao ritmo de uma vida urbana intensa. Hoje a cidade não precisa de nós miúda! Eu ainda gosto das cidades e ainda as uso como o Baudelaire fazia, mas isto sou eu. A cidade está como nas tuas imagens, desprovida de gente. É uma soma de arquitecturas, ruas, vazios. As pessoas vivem dentro, no dentro e só usam o fora para ir para outro dentro mais ou menos interior. Gostei da escolha dos sítios (gosto desta palavra) que escolheste para fotografar, são paradigmas do que eu digo. São ruas de passagem entre dois dentros. As cidades deixaram de ter permanências e a questão da mobilidade está mais na ordem do dia do que a qualificação do espaço público, sítios da permanência por excelência. Fala-se muito em espaço público mas as praças são só lajes de granito, os cafés ás moscas e as lojas museus de peças que não auguram uso. As pessoas jantam sandes pelo caminho, fecham-se na internet e quando consomem tentam poupar tempo em cidades artificiais.
Não vejo o futuro das cidades com bons olhos, muito menos com muitos olhos de muita gente, gente que criou a cidade para ser servida e que hoje tem um papel de subserviência à cidade.
Já leste As Flores do Mal? Lê porque é um bom livro, e os bons livros lêm-se tão pouco, mas lê-o também para reflectires sobre a cidade de hoje, e se te interessar tanto como a mim, planeia o (ou um) crescimento da cidade, pensa em como deve ser a sua evolução, mas não cries falsas ilusões, porque já não consegues pôr mão nela.
Vemo-nos amanhã?, na cidade.

jose andre ramos, Porto,26.6.07

2 comentários:

s.w. disse...

vemo-nos amanhã, mas não em napoles...

s.w. disse...

um texto que fala do porto... ja merecia uma fotografia desse mesmo porto descrito por ti e fotografado por mim